quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Resumo

                     Resumo de ALFA 1  


ARTIGO 1
SOARES, M. B. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. In: Reunião Anual da Anped, 26., Caxambu, 2003. Anais. Caxambu: ANPEd, 2003.


A invenção do letramento

Assim, é em meados dos anos de 1980 que se dá, simultaneamente, a invenção do letramento no Brasil, do illettrisme, na França, da literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele denominado alfabetizaçãoalphabétisation. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora a palavra literacy já estivesse dicionarizada desde o final do século XIX, foi também nos anos de 1980.Entretanto, se há coincidência quanto ao momento histórico em que as práticas sociais de leitura e de escrita emergem como questão fundamental em sociedades distanciadas geograficamente, socioeconomicamente e culturalmente, o contexto e as causas dessa emersão são essencialmente diferentes em países em desenvolvimento, como o Brasil, e em países desenvolvidos, como a França, os Estados Unidos, a Inglaterra. Nos países desenvolvidos, ou do Primeiro Mundo, as práticas sociais de leitura e de escrita assumem a natureza de problema relevante no contexto da constatação de que a população, embora alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas sociais e profissionais que envolvem a língua escrita.Essa autonomização, tanto na França quanto nos Estados Unidos, das questões de letramento em relação às questões de alfabetização não significa que estas últimas não venham sendo, elas também, objeto de discussões, avaliações, críticas. No Brasil, porém, o movimento se deu, de certa forma, em direção contrária: o despertar para a importância e necessidade de habilidades para o uso competente da leitura e da escrita tem sua origem vinculada à aprendizagem inicial da escrita, desenvolvendo-se basicamente a partir de um questionamento do conceito de alfabetização. Assim, ao contrário do que ocorre em países do Primeiro Mundo, como exemplificado com França e Estados Unidos, em que a aprendizagem inicial da leitura e da escrita a alfabetização, para usar a palavra brasileira mantém sua especificidade no contexto das discussões sobre problemas de domínio de habilidades de uso da leitura e da escrita problemas de letramento , no Brasil os conceitos de alfabetização e letramento se mesclam, se superpõem, freqüentemente se confundem. Esse enraizamento do conceito de letramento no conceito de alfabetização pode ser detectado tomando-se para análise fontes como os censos demográficos, a mídia, a produção acadêmica. A partir do conceito de alfabetizado, que vigorou até o Censo de 1940, como aquele que declarasse saber ler e escrever, o que era interpretado como capacidade de escrever o próprio nome; passando pelo conceito de alfabetizado como aquele capaz de ler e escrever um bilhete simples, ou seja, capaz de não só saber ler e escrever, mas de já exercer uma prática de leitura e escrita.

Em síntese, e para encerrar este tópico, conclui-se que a invenção do letramento, entre nós, se deu por caminhos diferentes daqueles que explicam a invenção do termo em outros países, como a França e os Estados Unidos. Enquanto nesses outros países a discussão do letramento illettrisme, literacy e illiteracy se fez e se faz de forma independente em relação à discussão da alfabetização apprendre à lire et à écrire, reading instruction,emergent literacy, beginning literacy , no Brasil a discussão do letramento surge sempre enraizada no conceito de alfabetização, o que tem levado, apesar da diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, a uma inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do conceito de letramento, por razões que tentarei identificar mais adiante, o que tem conduzido a um certo apagamento da alfabetização que, talvez com algum exagero, denomino desinvenção da alfabetização, de que trato em seguida.
A desinvenção da alfabetização
O neologismo desinvenção pretende nomear a progressiva perda de especificidade do processo de alfabetização que parece vir ocorrendo na escola brasileira ao longo das duas últimas décadas.

Certamente essa perda de especificidade da alfabetização é fator explicativo evidentemente, não o único, mas talvez um dos mais relevantes do atual fracasso na aprendizagem e, portanto, também no ensino da língua escrita nas escolas brasileiras, fracasso hoje tão reiterado e amplamente denunciado.a alfabetização caracterizava-se, ao contrário, por sua excessiva especificidade, entendendo-se por "excessiva especificidade" a autonomização das relações entre o sistema fonológico e o sistema gráfico em relação às demais aprendizagens e comportamentos na área da leitura e da escrita, ou seja, a exclusividade atribuída a apenas uma das facetas da aprendizagem da língua escrita. O que parece ter acontecido, ao longo das duas últimas décadas, é que, em lugar de se fugir a essa "excessiva especificidade", apagou-se a necessária especificidade do processo de alfabetização.Várias causas podem ser apontadas para essa perda de especificidade do processo de alfabetização; limitando-me às causas de natureza pedagógica, cito, entre outras, a reorganização do tempo escolar com a implantação do sistema de ciclos, que, ao lado dos aspectos positivos que sem dúvida tem, pode trazer e tem trazido uma diluição ou uma preterição de metas e objetivos a serem atingidos gradativamente ao longo do processo de escolarização; o princípio da progressão continuada, que, mal concebido e mal aplicado, pode resultar em descompromisso com o desenvolvimento gradual e sistemático de habilidades, competências, conhecimentos.

alfabetização, como processo de aquisição do sistema convencional de uma escrita alfabética e ortográfica, foi, assim, de certa forma obscurecida pelo letramento, porque este acabou por freqüentemente prevalecer sobre aquela, que, como conseqüência, perde sua especificidade.


É preciso, a esta altura, deixar claro que defender a especificidade do processo de alfabetização não significa dissociá-lo do processo de letramento, como se defenderá adiante. Entretanto, o que lamentavelmente parece estar ocorrendo atualmente é que a percepção que se começa a ter, de que, se as crianças estão sendo, de certa forma, letradas na escola, não estão sendo alfabetizadas, parece estar conduzindo à solução de um retorno à alfabetização como processo autônomo, independente do letramento e anterior a ele. É o que estou considerando ser uma reinvenção da alfabetização que, numa afirmação apenas aparentemente contraditória, é, ao mesmo tempo, perigosa se representar um retrocesso a paradigmas anteriores, com perda dos avanços e conquistas feitos nas últimas décadas e necessária se representar a recuperação de uma faceta fundamental do processo de ensino e de aprendizagem da língua escrita. É do que se tratará no próximo tópico.

A reinvenção da alfabetização

resultados de avaliações de níveis de alfabetização da população em processo de escolarização, que se multiplicaram nas duas últimas décadas, no Brasil e em muitos outros países, têm levado a críticas a essa concepção holística da aprendizagem da língua escrita, incidindo essa crítica particularmente na ausência, no quadro dessa concepção, de instrução direta e específica para a aprendizagem do código alfabético e ortográfico. 
 Na França, a constatação de dificuldades de leitura e de escrita na população em fase de escolarização levou o Observatório Nacional da Leitura, órgão consultivo do Ministério da Educação Nacional, da Pesquisa e da Tecnologia, a divulgar, no final dos anos de 1990, o documento Apprendre à lire au cycle des apprentissages fondamentaux (Observatoire National de la Lecture, 1998), em que, com apoio em dados de pesquisas sobre a aprendizagem da leitura, afirma-se que o conhecimento do código grafofônico e o domínio dos processos de codificação e decodificação constituem etapa fundamental e indispensável para o acesso à língua escrita, "condition nécessaire, bien que non suffisante, de la comprehénsion des textes" (grifo do original), etapa que não pode ser vencida.
Nos Estados Unidos, desde o início dos anos de 1990 tem sido intensa a discussão sobre a aprendizagem da língua escrita na escola, discussão que se concentra, sobretudo, em polêmicas que contrapõem a concepção holística.
Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita a alfabetização - e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita o letramento. Não são processos independentes, mas interdependentes, e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolverno contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização.

A concepção "tradicional" de alfabetização, traduzida nos métodos analíticos ou sintéticos, tornava os dois processos independentes, a alfabetização a aquisição do sistema convencional de escrita, o aprender a ler como decodificação e a escrever como codificação precedendo o letramento o desenvolvimento de habilidades textuais de leitura e de escrita, o convívio com tipos e gêneros variados de textos e de portadores de textos, a compreensão das funções da escrita. Na concepção atual, a alfabetização não precede o letramento, os dois processos são simultâneos, o que talvez até permitisse optar por um ou outro termo, como sugere Emilia Ferreiro em recente entrevista à revista Nova Escola, em que rejeita a coexistência dos dois termos com o argumento de que em alfabetização estaria compreendido o conceito de letramento, ou vice-versa, em letramento estaria compreendido o conceito de alfabetização o que seria verdade, desde que se convencionasse que por alfabetização seria possível entender muito mais que a aprendizagem grafofônica, conceito tradicionalmente atribuído a esse processo, ou que em letramento seria possível incluir a aprendizagem do sistema de escrita.


Em síntese, o que se propõe é, em primeiro lugar, a necessidade de reconhecimento da especificidade da alfabetização, entendida como processo de aquisição e apropriação do sistema da escrita, alfabético e ortográfico; em segundo lugar, e como decorrência, a importância de que a alfabetização se desenvolva num contexto de letramento - entendido este, no que se refere à etapa inicial da aprendizagem da escrita, como a participação em eventos variados de leitura e de escrita, e o conseqüente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas em relação a essas práticas; em terceiro lugar, o reconhecimento de que tanto a alfabetização quanto o letramento têm diferentes dimensões, ou facetas, a natureza de cada uma delas demanda uma metodologia diferente, de modo que a aprendizagem inicial da língua escrita exige múltiplas metodologias, algumas caracterizadas por ensino direto, explícito e sistemático-particularmente a alfabetização, em suas diferentes facetas-outras caracterizadas por ensino incidental, indireto e subordinado a possibilidades e motivações das crianças; em quarto lugar, a necessidade de rever e reformular a formação dos professores das séries iniciais do ensino fundamental, de modo a torná-los capazes de enfrentar o grave e reiterado fracasso escolar na aprendizagem inicial da língua escrita nas escolas brasileiras.
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